A curto prazo, é expectável que a Covid-19 tenha um impacto, em geral, menos positivo para as mulheres e a igualdade de género… mas, ao longo do tempo, sairão reforçadas.
Nas últimas semanas, tenho conversado com dezenas de executivos seniores sobre algum efeito colateral benéfico da crise do coronavírus. Para as empresas, a crise está a trazer uma rápida aceleração das tendências pré-Covid, tais como a transformação digital, a evolução do comportamento do cliente, novas atitudes em relação às mudanças climáticas, a erosão da globalização e assim por diante. Para os trabalhadores, o efeito aproxima-se mais claramente de uma quebra de paradigma. Novas dinâmicas na relação organização-colaboradores vieram, finalmente, à tona, incluindo modalidades de trabalho remoto, reuniões mais curtas e menos presenciais, maior autonomia e agilidade na tomada de decisão, maior experimentação, uma cadência de execução mais rápida e muito mais.
A pergunta que fica é: o que podemos antecipar sobre o impacto da pandemia em outras áreas das relações organização-colaboradores, nomeadamente, no que toca à igualdade de género? O debate sobre como promover uma maior integração das mulheres, inclusive em posições de destaque dentro do mundo corporativo, está em pauta há já vários anos no mundo académico e empresarial. Apesar dos progressos feitos nas últimas décadas, há ainda muito que fazer para conquistar igualdade de género. A pandemia remodelará os avanços da diversidade de género? Embora eu deva dizer de antemão que não, tenho a resposta, e gostaria de sugerir algumas reflexões.
A curto prazo, é expectável que a Covid-19 tenha um impacto, em geral, menos positivo para as mulheres e a igualdade de género…
Primeiro, este tipo de crise expõe as desigualdades que existiam anteriormente, nomeadamente, em relação às taxas de desemprego. Enquanto um número crescente de indivíduos está a sentir a dor económica, muitos dos recém-desempregados são trabalhadores a tempo parcial, jovens, minorias e mulheres.
Segundo dados do Instituto Nacional de Estatística, no final de abril deste ano, entre as mulheres portuguesas, a taxa de desemprego ficou nos 7,4%, ou seja, uma percentagem 42,3% superior à taxa de desemprego de 5,2% dos homens – em fevereiro, a diferença era só de 16,9%. Outros países, realidades semelhantes. No Brasil, no final de março, a taxa de desemprego ficou nos 14,5% – 39,4% superior à taxa de desemprego de 10,4% dos homens. Já, nos Estados Unidos da América, uma análise publicada pela Mckinsey constatou que, no final do mês de março, as mulheres representavam 59% dos empregos iniciais perdidos. Isto porque detêm 63% de todos os empregos temporários, que representam geralmente o primeiro tipo de contrato a ser cortado em qualquer recessão.
Além disso, a Covid-19 tem impactado intensamente as mulheres por se encontrarem em situação de maior vulnerabilidade profissional. A crise revelou uma classe trabalhadora – com participação feminina relevante – nas linhas de frente da economia composta por profissionais de saúde, agricultores, professores, estafetas, caixas de supermercado, coletores de lixo, ou mesmo empregadas domésticas, e forçou os governos a pedir que esses trabalhadores continuassem ativos, apesar das repetidas recomendações para ficar em casa. Ainda assim, na maioria, estas são profissões desvalorizadas socialmente, mal remuneradas e pouco sujeitas à reavaliação económica, porque – excetuando as áreas da saúde e educação – envolvem competências poucas qualificadas e, por padrão, é assim que julgamos o valor de um trabalho. Mais, as mulheres têm sofrido uma maior vulnerabilidade psicológica, têm enfrentado sentimentos de angústia com uma frequência um pouco superior aos homens, mas não os compartilham por vergonha e medo do que os outros vão pensar.
No entanto, tamanha precariedade ocorre não somente entre profissões menos qualificadas, e muitas vezes até desqualificadas, mas também no mercado de trabalho formal e em (altos) níveis executivos, de forma que as discrepâncias de tratamento entre homens e mulheres estão a ser evidenciadas. Assim, o trabalho remoto realizado em home office tornou-se uma realidade para grande parte dos trabalhadores. Para muitos deles, uma transição abrupta e compulsória. Para as mulheres em específico, a confirmação da tradicional divisão familiar, na qual as mulheres são responsáveis pela família e pela casa, precisando de dividir o seu tempo entre trabalho, atividades domésticas e cuidados da família, sem prejudicar sua produtividade laboral.
Em maio de 2020 foi realizada uma pesquisa com o objetivo de desmistificar as relações entre o home office e a produtividade no cenário Covid-19, que analisou também a contribuição de fatores como a infraestrutura tecnológica, a dinâmica familiar e a dinâmica organizacional [1]. Uma análise por género mostra que:
- A produtividade das mulheres cai em relação à dos homens quando se tem uma ou duas crianças em casa, o que pode estar associado ao fato de as mulheres se dedicarem mais aos cuidados com a família, nomeadamente a educação escolar
- A maior necessidade de realizar também tarefas domésticas pode estar associada ao facto de 58% das mulheres ter alterado o seu horário de trabalho com o regime de home office, enquanto apenas 52% dos homens o fez
- Mesmo tendo uma perceção semelhante em relação à mudança no nível de cobrança, uma proporção maior de mulheres sente-se pressionada a trabalhar mais para mostrar a sua produtividade aos respetivos gestores
- Mais de um quarto dos homens gostaria de manter o regime de home office diariamente ou quatro vezes por semana, enquanto para mulheres a percentagem se limita a 19%
Em resumo, esta pesquisa mostra que os tão esperados ganhos de produtividade com o trabalho remoto em condições de home office são mais prováveis em atividades realizadas por homens, pois o trabalho adicional tende a recair sobre as mulheres, que mais frequentemente assumem responsabilidades domésticas e educação escolar.
Por fim, além de enfrentarem esse “teto de vidro” – expressão que se refere às barreiras impostas a mulheres que desejam ascender profissionalmente – as mulheres estão também sujeitas ao “penhasco de vidro”. Este novo termo sintetiza o fenómeno de que as mulheres, quando indicadas para cargos de liderança executiva, muitas vezes assumem a função em tempos de crise, nos quais a empresa enfrenta dificuldades financeiras ou outros desafios que podem, inclusive, ameaçar sua existência. A consequência natural disso é que as executivas têm mais probabilidades de serem demitidas do que os homens quando ocupam a mesma posição. Assim, o foco do combate à desigualdade de género não deve ser apenas permitir e encorajar que as mulheres cheguem ao topo, mas também garantir o seu sustento. [2]
Ao longo do tempo, as mulheres e a igualdade de género sairão reforçadas
Primeiro, um número crescente de mulheres líderes emergiu como uma referência em liderança positiva e competente. Em particular, vários artigos destacaram os países liderados por mulheres, mostrando uma melhor administração da crise. Esse grupo de líderes talentosas pode tornar-se a primeira onda visível de modelos e inspirações para as próximas gerações, redefinindo a maneira como escolhemos e avaliamos líderes na política e nos negócios. Existem estudos que indicam que, quando as mulheres veem outras mulheres em determinados cargos, acham mais fácil imaginar-se nestas mesmas posições e têm maior probabilidade de se candidatar. Além disso, a retenção de profissionais de nível júnior está altamente correlacionada com o número de supervisoras diretas.
Ao mesmo tempo, muitas das competências mais valorizadas em momentos de crise e transição são superiormente dominadas por mulheres, abrindo espaço para o destaque feminino em cargos de liderança. Por exemplo, os artigos citados anteriormente também se aprofundaram nos pontos fortes individuais das mulheres líderes, sublinhando a confiabilidade baseada nos dados de Angela Merkel (Alemanha), a racionalidade empática de Jacinda Ardern (Nova Zelândia), a resiliência silenciosa de Tsai Ing-wen (Taiwan), e geralmente a curiosidade, humildade e integridade. A maioria destas competências compõe a lista de 17 das 19 competências-chave de liderança nas quais mulheres superaram os homens, como indica a pesquisa conduzida pela Harvard Business Review [3]. Assim, não só a desigualdade de género em posições estratégicas é injustificável em geral, pois as mulheres tendem a ter mais competências de liderança do que os homens, como, no cenário pós-Covid-19, as mulheres também possuem uma vantagem competitiva em competências de extrema criticidade para a sobrevivência das empresas.
Por fim, as mulheres parecem, igualmente e provavelmente, mais bem preparadas para lidar com as duas tendências anteriores à Covid-19 e que irão influenciar as relações organizações-colaboradores no futuro pós-pandemia: futuro do trabalho e capitalismo digital.
Em relação ao futuro do trabalho, uma dimensão importante refere-se a como as rápidas mudanças tecnológicas afetam o número e a qualidade de empregos. Um relatório recente da McKinsey revelou que 30% das “atividades de trabalho” poderiam ser automatizadas até 2030, e que até 375 milhões trabalhadores em todo o mundo poderiam ser afetados por tecnologias emergentes [4]. Curiosamente, entre 2000 e 2020, na América Latina, as atividades mais ameaçadas pela tendência da automação diminuíram mais entre as mulheres (9,2 pontos percentuais) do que entre os homens (5,2 pontos percentuais). As atividades que incluem oficiais, operadores e artesãos de ofícios mecânicos e outras caíram acentuadamente. Existe até uma mudança na tendência de emprego entre mulheres no apoio administrativo, uma atividade que estas tradicionalmente dominam. Aliás, no caso das mulheres, a redução no nível médio de atividades foi compensada pelo aumento do emprego em funções nos dois extremos da distribuição de competências. Se as mulheres se mudaram principalmente para empregos nos setores de serviços de baixa qualificação e comércio, mais de um terço das mulheres deslocadas optaram por um tipo de ocupação onde é notável o crescimento de profissionais de ciências. Por outro lado, a redução da presença dos homens em atividades de nível médio foi quase totalmente compensada por um aumento no emprego de baixa qualificação.
No que diz respeito ao capitalismo digital, é fundamental observar que o valor do trabalho relacional, pilar de uma economia de serviços, é principalmente resultado do tempo que o trabalhador passa com os outros. Como o tempo não é extensível, estes serviços estão menos sujeitos a ganhos de produtividade. A epidemia do coronavírus foi um ponto de inflexão que trouxe metade da humanidade simultaneamente para um novo normal onde somos forçados a mobilizar tecnologias para intermediar a comunicação uns com os outros. Isso deu origem a um capitalismo digital, que digitaliza os relacionamentos pessoais, os torna escaláveis, e, portanto, permite uma “industrialização” da sociedade de serviços. Assim, como evidências da psicologia e neurociência revelam, neste contexto as mulheres têm vantagem sobre os homens, pois possuem competências sociais e interpessoais, como empatia, capacidade de julgar e comunicação não-verbal e extroversão, entre outras.
O impacto final da pandemia da Covid-19 sobre as mulheres e os avanços da diversidade de género serão parcialmente determinados pela eficácia com que gestores de políticas e líderes empresariais mitiguem os danos estruturais de curto prazo na igualdade de género, assim como pela capacidade de as organizações e de os executivos entenderem que isso pode ser uma fonte de vantagem competitiva sustentável.
[1]: Desmistificando a produtividade e os efeitos do Home Office integral durante a pandemia. Paul Ferreira, Julia Nicida, Luiz Valente
[2]: Brooke-Marciniak A. From glass ceiling to glass cliff: women are not a leadership quick-fix. World Economic Forum. 2018
[3]Zenger J, Folkman J. Research: Women Score Higher Than Men in Most Leadership Skills. 2019. Harvard Business Review (HBR). 2020
[4] https://mck.co/2z39Koy