Em outubro de 2019, um estudo da Mercer apontava que Portugal era o segundo país da Europa a apresentar maior maturidade no que se referia à transformação digital dos recursos humanos.
De acordo com o relatório “Still transforming or already performing?” – que inquiriu 600 gestores de RH em diversas indústrias, em sete mercados europeus – 59% dos responsáveis de RH afirmavam que a digitalização dos RH da sua empresa era uma prioridade na estratégia corporativa e 98% diziam mesmo já ter começado a transformação digital na sua organização.
No entanto, apesar de a função de RH poder desempenhar um papel estratégico na transformação digital de toda organização, por se encontrarem numa posição com muitos pontos de contacto com os colaboradores, apenas 3% dos gestores de RH consideravam essa tarefa como uma responsabilidade sua. Segundo esta pesquisa, os recursos humanos também ficavam para trás quando se tratava de digitalizar as suas próprias atividades: apenas 40% dos entrevistados tinham na altura uma estratégia documentada de Tecnologia de Informação de Recursos Humanos e somente 33% já tinha iniciado a sua implementação.
Porém, em 2020, a crise da Covid-19 veio mudar profundamente a maneira como todas as empresas trabalham, oferecendo aos recursos humanos a possibilidade de acelerarem para o digital. A importância dessa transformação digital foi prevista há anos, mas agora, por força de uma pandemia, foi imposta aos RH, mais rápido do que todos no setor poderiam imaginar.
Como refere José Luís Nunes, solution advisor e human capital management da SAP Portugal, “um estudo da Mckinsey refere que em dois meses alcançou-se o progresso digital esperado para cinco anos. Uma inevitabilidade, face ao contexto em que vivemos, mas também uma oportunidade.” No que diz respeito à SAP, a empresa tem apostado em dotar as direções de recursos humanos com soluções digitais capazes de avaliar o bem-estar e a segurança das suas equipas e colaboradores. “Sem também esquecermos a crescente atenção que se verifica, pela tão necessária formação e capacitação dos recursos humanos, ao nível das competências digitais e adaptação a novas situações”, complementa.
Esta crise acabou mesmo por se revelar um teste de stress inesperado para os departamentos de gestão de pessoas e para a tecnologia que estes utilizam no dia a dia, revelando lacunas desconhecidas e alavancando novas soluções digitais criativas, possibilitando os RH para assumirem a liderança e moldarem como o resto da organização pode prosperar num ambiente continuamente perturbado, aplicando mais recursos digitais na maneira de trabalhar.
Ao mesmo tempo, a pandemia trouxe uma nova realidade: uma grande procura por trabalho virtual, com sistemas fáceis, intuitivos, acessíveis a qualquer hora e em qualquer local – uma condição essencial para manter a continuidade do trabalho, já que milhares de trabalhadores, principalmente os do setor dos serviços, foram forçados a mudar para uma forma remota de trabalhar. Exemplo disso são as soluções cloud do ISQe, que, segundo Pedro Coelho, diretor de marketing, “têm uma implementação rápida e automatizam os processos da gestão do ciclo de vida do colaborador na empresa desde o recrutamento, formação e-learning e avaliação de desempenho sendo totalmente adaptadas aos clientes com foco na garantia da melhor experiência de utilizador.”
Do ponto de vista do colaborador, esta realidade fez com que o trabalho e a vida pessoal estivessem mais interligados do que nunca, gerando novas experiências de trabalho. Do ponto de vista organizacional, tornou-se fundamental manter a conexão e comunicação com os trabalhadores.
Indiscutível será dizer que as organizações que, num cenário pré-Covid, já tinham investido em tecnologia de recursos humanos flexível e robusta estavam mais bem posicionadas para sustentar as suas operações e responder rapidamente às necessidades dos negócios, quando a Covid-19 começou a impactá-los. Um estudo recente da Neves de Almeida HR Consulting procurou traçar uma panorâmica da inovação, transformação digital e dos principais desafios dos recursos humanos no âmbito do desenvolvimento das organizações, através de entrevistas a CEO e responsáveis de RH de mais 200 empresas a atuar em Portugal. Essa pesquisa mostrou que, de acordo com os inquiridos, as áreas de RH que mais seriam impactadas pela transformação digital seriam: o desenvolvimento e integração (28%), a cultura organizacional e práticas e modelos de trabalho (27%), a atração, recrutamento, seleção e integração (20%) e a gestão de desempenho e carreiras (13%). Menos impactadas seriam as áreas de employer branding (6%) e operações RH.
Trabalho remoto e distanciamento social. A mudança de paradigma
A pandemia obrigou as organizações a adaptarem-se a adotar novas rotinas e novos processos de trabalho. “Os RH, para já, deixaram de ter tanto tempo para aquilo que são os processos tradicionais de recursos humanos, colocaram uma série de coisas de lado e tiveram muito tempo dedicados a reorganizar-se”, acredita Frederico Cruz, senior manager da Everedge Consulting, uma empresa de consultoria com atividade em Portugal e Angola. Para o responsável, o contexto demonstrou, acima de tudo, a importância de as empresas terem processos mais estruturados e informação clara, para que os colaboradores, de forma mais autónoma, tenham acesso a ela sem que as equipas de gestão de RH percam tempo.
Em Portugal, foram 1,09 milhões as pessoas empregadas – 23,1% do total – que ficaram a trabalhar em casa, ou quase sempre em casa, no segundo trimestre do ano, de acordo com um inquérito específico sobre teletrabalho, lançado pelo Instituto Nacional de Estatística (INE). A esmagadora maioria (91,2%) indicou, nesse relatório, que o fez por causa da pandemia.
O trabalho remoto e a colaboração em modo virtual foram a grande tendência durante os últimos meses. “Falamos sobre ligar os sistemas de RH a sistemas de colaboração que nós também estamos a usar agora – o Zoom, o Teams – e permitir que as coisas sejam integradas. Foi um dos pontos que trabalhámos bastante”, explica o responsável desta empresa tecnológica que possui uma solução própria que permite gerir os processos de RH e a gestão de talento – UPstanding Talent Management.
Se já existiam soluções modernas de gestão da força de trabalho para necessidades anteriores à Covid, “foi necessário olhar e focar em algumas dessas componentes para torná-las um pouco mais sofisticadas, melhorá-las”, explica Frederico Cruz. A Meta4, empresa especialista em soluções tecnológicas para a gestão e desenvolvimento do capital humano, identificou alguns aspetos críticos que, neste contexto, as áreas de recursos humanos podem promover e assegurar, graças às possibilidades oferecidas pela tecnologia, nomeadamente:
- Assegurar a continuidade do negócio: o alinhamento dos recursos humanos e colaboradores com as necessidades dos seus clientes é fundamental para a sobrevivência das organizações. Neste contexto, no qual se exige à organização uma engrenagem perfeita, a tecnologia permite que colaboradores e colegas de recursos humanos acedam a dados e informações atualizadas a partir de qualquer computador ou dispositivo móvel. Tal possibilita às empresas continuarem a prestar os seus serviços graças ao teletrabalho, desde que a natureza do seu negócio o permita.
- Assegurar o cumprimento das normas: nos últimos meses, as normas legais que impactam o funcionamento das organizações têm sofrido alterações e atualizações constantes. A tecnologia vem permitir a conformidade regulatória dos processos de recursos humanos com essas diretrizes.
- Garantir a continuidade dos processos estratégicos de RH: a tecnologia permite também às organizações continuar a gerir processos estratégicos para os negócios, como o recrutamento e seleção – através de entrevistas em vídeo, evitando riscos desnecessários – ou a formação. Graças às soluções de e-learning, os funcionários podem continuar a aceder aos seus programas de formação, durante este período, sem ter que interromper os planos de desenvolvimento, com o possível custo que tal implicaria para as empresas.
Foco na comunicação e colaboração
Nos últimos meses, a par da segurança, a comunicação tem sido uma das grandes prioridades das organizações. Comunicação interna e colaboração estão na ordem do dia. “As organizações que não estavam preparadas para isso tiveram que o fazer de forma muito rápida, esse investimento, essa preparação, essa reorganização, e isso foi positivo na perspetiva de que agora já estão mais bem preparados para esse tipo de trabalho e para aquilo que possa vir no futuro”, explica o responsável.
No caso da Everedge Consultig, a solução própria já contemplava um portal dos colaboradores, onde os profissionais podiam chegar e consultar a informação, tendo a capacidade para fazer esta comunicação interna. Mas a pandemia exigia mais. “Nós tentámos criar novas dinâmicas de interação dos colaboradores com a organização. Lançar inquéritos, por exemplo. Quando foi a altura do início da Covid e as pessoas tiveram de ficar em casa, como quando se começou a colocar a questão de voltar para o escritório e em que condições, era importante auscultar os colaboradores. Por isso, sentimos a necessidade de incorporar funcionalidades de inquérito, que as pessoas entrassem no portal e tivessem de responder a perguntas e que essa informação fosse rapidamente capturada pelos RH e trabalhada”.
Na Daufood, empresa que gere o master franchisee da Domino’s Pizza em vários países da Europa, a pandemia trouxe desafios, ao nível da gestão das pessoas, que, segundo Salomé Barreira, people first director da Domino’s Pizza Portugal, foram além da dimensão da digitalização e tecnológica. “Com as nossas lojas abertas e o suporte das equipas de back office a trabalhar em regime de teletrabalho, tornou-se crítico manter canais de comunicação fluidos e eficazes”, refere a profissional. “Informar sobre as decisões da empresa, tais como o plano de contingência, as medidas de segurança para cada função, as decisões do governo que impactavam na empresa e as consequências no payroll. Tudo isto através de SharePoint, Teams, WhatsApp e telefone. Na fase mais crítica gerimos quase 3 500 contactos telefónicos, à volta de 500 WhatsApp e outros tantos SMS, só para temas Covid”, explica a responsável, acrescentando que o contexto levou o departamento a um outro nível de interação com as pessoas: “Tranquilizar foi crítico. Saber ouvir, entender o contexto pessoal do trabalhador, ajudar a resolver qualquer questão pessoal e familiar levou-nos a um outro nível de interação com as nossas pessoas.”
Especialista em recursos humanos, a Randstad procurou adaptar o trabalho a um modelo quase 100% digital, garantindo não só uma experiência o mais próxima possível do real, mas também o bem-estar de todas as pessoas. “Passámos para um contacto próximo com os nossos colaboradores, através de videochamadas, e adotámos um plano de diretos semanais para todos os colaboradores, não só com os nossos diretores e CEO, mas também lives com a área de RH, onde se abordam as principais dúvidas face à pandemia. Para gerir as diferentes equipas no escritório, passámos a utilizar a nossa app YouPlan, que nos permite gerir e planear as presenças nos escritórios e delegações, assegurando o planeamento necessário no dia a dia”, conta a diretora de recursos humanos Mariana Canto e Castro.
Na BorgWarner, uma empresa industrial que produz peças para automóveis, antes da pandemia, apenas 30% das pessoas da área de apoio à produção (escritórios) já tinham aderido ao regime de teletrabalho, o qual respondia a limites muito específicos – um dia por semana num máximo de 5 dias por mês. A pandemia obrigou a que essa prática se generalizasse, mas, nesta empresa, a digitalização de processos e a existência de canais de comunicação internos assentes em formatos digitais precederam a pandemia, o que lhes permitiu ter condições para reagir rapidamente. “Foi possível implementar o trabalho remoto, em larga escala, com relativa facilidade para as equipas de desenvolvimento de produto e de suporte ao negócio”, partilha Ana Silva, diretora de recursos humanos. Já a produção da fábrica, em Viana do Castelo, nunca parou. A preocupação atual passa por garantir a segurança de todos os profissionais. Num edifício que recebe diariamente cerca de mil pessoas, foi preciso distanciar os horários de turnos e criar mais espaços para os momentos de pausas, entre muitas outras medidas. “A maior parte dos nossos mais de 800 colaboradores apenas consegue desenvolver as suas funções presencialmente, pelo que as ferramentas de comunicação digitais foram e continuam a ser as que mais impacto têm”, conclui.
Outro exemplo chega-nos da Fnac, empresa do retalho especializado, que conta atualmente com uma equipa de 1800 colaboradores. Segundo Rita Mingatos, responsável de recrutamento & desenvolvimento RH, “o contexto de pandemia em que vivemos veio reforçar a urgência de um dos nossos principais eixos estratégicos, a transformação digital, mas agora com um foco especial na gestão das pessoas.” Durante este período, a digitalização permitiu à organização continuar a planear e desenvolver a atividade, através do trabalho remoto, com recurso a ferramentas colaborativas, distribuindo as equipas por turnos e espaços, com o menor risco possível. “Paralelamente, os canais digitais têm sido o principal motor de comunicação e da Cultura Interna”, nota.
Para a Altitude, uma empresa portuguesa de tecnologias de informação, dedicada à criação de produtos e soluções para contact centers, com a pandemia, a grande diferença na digitalização foi deixar de ser opcional para ser a única forma de trabalhar e comunicar. “Iniciámos o nosso processo de transformação digital há três anos, com o investimento em aplicações de mobilidade. A pandemia veio reforçar a necessidade de implementarmos todos os processos que já tínhamos definidos nesta área, desde políticas como clean-desk, paperless e free-sitting, a trabalharmos em qualquer lugar e só com ferramentas digitais”, clarifica Rui Santos, CFO, head of HR, finance and legal.
Já na tecnológica Abaco Consulting, a utilização massiva das ferramentas Microsoft 365, e especificamente o Teams, permitiu aos colaboradores trabalhar a comunicação e a partilha de informação, de uma forma até mais produtiva e regular do que antes do teletrabalho forçado. “Surpreendentemente não baixámos a nossa produtividade, mas cremos que tal só foi possível devido à nossa cultura forte, à proximidade das nossas lideranças e rotinas de trabalho e o fator que permitiu que as coisas continuassem a rolar normalmente em termos de trabalho, a tecnologia e digitalização da grande maioria dos nossos processos”, refere Ângela Santos, board member e responsável pelo desenvolvimento de capital humano da Abaco Consulting, empresa do setor tecnológico com cerca de 140 colaboradores em Portugal.
Também na tecnológica Unipartner procurou cumprir-se o distanciamento social, aumentando a proximidade com recurso ao digital. “Criámos novos processos virtuais e flexíveis de onboarding, gestão do talento e proximidade com as equipas. Os nossos eventos passaram a ser em formato híbrido, reforçando o engagement e a comunicação”, nota a diretora de recursos humanos, Elisabete Chaves.
Na empresa científica Solvay, a digitalização já fazia parte do dia a dia e, por isso, o período de confinamento veio apenas reforçar a estratégia que o grupo já vinha a adotar nesse sentido. “O que notámos com esta situação pandémica foram equipas mais sintonizadas, alinhadas e sob o mesmo contexto. Não tivemos obstáculos digitais e operacionais e assegurámos os deliverables a 100% sem disrupções. Muito concretamente, os nossos softwares de RH permitiram-nos alcançar níveis de eficiência muito elevados e garantir o business as usual nos 64 países”, sublinha Joana Adriano, EMEA talent acquisition deste grupo com cerca de 24 mil colaboradores.
Os Laboratórios Boiron, líderes mundiais na produção e comercialização de medicamentos homeopáticos, presente em mais de 50 países, referiram que a plataforma OMNIA da PRIMAVERA lhes trouxe um grande ganho de eficiência na gestão dos recursos humanos. Para João Pedro Jorge, diretor financeiro e administrativo, “é tudo feito de uma forma muito mais rápida, os documentos estão todos disponíveis na plataforma, onde as pessoas registam faltas, férias, despesas, acedem a declarações e recibos. E o próprio reporting mensal passou a ser célere. Pelo menos, um dia de trabalho por mês foi poupado a algumas pessoas na empresa e isso é significativo.”
Garantir acessibilidade e segurança (e autonomia)
A pandemia trouxe novos desafios aos negócios. As empresas que ainda tinham alguma resistência à transformação digital viram-se obrigadas a ceder às inovações trazidas pelas novas tecnologias. O momento provou que mesmo empresas tradicionais podem e devem ser digitais. A digitalização de processos deixou de ser apenas uma tendência para se tornar uma realidade que deve permanecer após o fim da crise do coronavírus.
Seja para fazer face às incertezas da atualidade, seja com olhos postos no futuro, com ou sem pandemia, os processos de RH estarem simplificados, serem intuitivos e estarem informatizados é cada vez mais importante. “É importante que os colaboradores sejam autónomos em determinados processos de RH, para que não consumam tempo dos RH e para que os RH também se possam concentrar noutras aspetos a que hoje em dia são necessárias dar resposta”, clarifica Frederico Cruz, acrescentando que quanto mais otimizados estiverem os processos, mais eficientes estiverem, menos tempo consumirem aos profissionais de RH, mais tempo eles vão ter para pensar e para reagir nestas situações”. Na Everedge, a simplicidade já faz parte do ADN e da forma como a empresa tecnológica vê o desenvolvimento da tecnologia para os RH: “já está muito intrínseca esta forma da simplificação, mas é uma coisa recorrente. Nós temos tentado simplificar cada vez mais, é isso que tentamos fazer e tentamos também responder.
Outra necessidade pedida recorrentemente à Everedge pelos seus clientes, neste contexto, é o acesso em qualquer lado à informação e aos processos de RH. “Dedicamo-nos também bastante à parte da segurança, da informação – quando estamos a expor a informação que é sempre sensível da organização para o exterior – e ao permitir que os colaboradores tenham acesso generalizado. Diria que são estes pontos principais: a comunicação, a simplicidade e a segurança e o acesso em qualquer lado foram os pontos em que nos focámos mais”, indica o responsável.
Frederico Cruz faz ainda uma última nota sobre a importância do “tempo” nos dias que correm, principalmente para os profissionais de RH, que têm estado na “linha da frente” no que toca ao funcionamento do tecido empresarial. “Há processos, pedidos de informação aos RH, ou aqueles processos mais administrativos de utilizar a informação, que exigem tempo dos RH. Se os colaboradores conseguirem fazer isso de forma autónoma, no fundo, aliviam a carga dos recursos humanos. Como estão remotos, ou a trabalhar em turnos, os horários nem sempre coincidem. Então, as pessoas conseguirem trabalhar esses processos, consultar a informação, de forma autónoma, é a forma ideal de ultrapassarmos essa situação.”
[Artigo publicado na RHmagazine 130]